(Fotografia de Miguel Manso, em Tunes)
Na Tunísia, no primeiro aniversário da Revolução do Jasmim, o programador e ensaísta António Pinto Ribeiro, procurou os sinais de mudança e encontrou todas as contradições e radicalismos dos períodos pós-revolucionários. Lembrou o 25 de Abril português: "São impressionantes as semelhanças." Mas responderam-lhe: "Na vossa revolução, vocês não tinham um deus tirano a intervir em favor de uma das partes."
Dezenas de homens vestidos de escuro estão sentados nas esplanadas e nos cafés e fumam muito. Outros, de pé, ocupam os passeios da rua em grupos, alguns de mãos dadas. São novos, velhos, a maioria tem um ar triste. Calcula-se que o desemprego ronde actualmente os 20% ou 30%, sendo que haverá regiões da Tunísia, em particular na costa e no Sul, em que pode atingir os 40%. São raras as mulheres sentadas nos cafés da Avenida Habib Bourguiba. Acontece às vezes entrar uma, directa ao balcão, tomar um café de pé e voltar a sair sem desviar o olhar da direcção por onde caminha. Muitas usam o véu e algumas o niqab, o véu que tapa completamente o rosto. Onde está a revolução?
É Inverno, o frio obriga a usar agasalhos pesados, um vento sopra dia e noite e dói. Um ano depois da Revolução do Jasmim, que começou a 14 de Janeiro de 2011, em Túnis, capital da Tunísia, dias depois de o jovem Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante de frutas e legumes, se ter imolado pelo fogo. Nesse dia, começou o fim da ditadura de vinte e cinco anos de Ben Ali. Hoje, muitas ruas continuam encerradas ao trânsito, praças e secções de avenidas estão cercadas por grandes rolos de arame farpado produzido exclusivamente por fábricas militares. Alguns tanques ocupam as praças, mas parecem ao abandono, tendo apenas um ou dois soldados muito jovens a guardá-los. Onde está a revolução?
A medina tem actividade comercial reduzida e são poucos os turistas que por ela passeiam. Na Avenida de França, os homens a vender casacos forrados de lã não param quietos no passeio para não gelarem. O casaco numa das mãos, a outra metida no bolso das calças. Alguns, muito poucos, atrevem-se a vender dois, um em cada mão.
Quando os palácios oficiais e particulares da família de Ben Ali foram tomados, os revoltosos encontraram milhões de dinares e ouro. Os taxistas fizeram as contas e dividiram pelos 10 milhões de tunisinos. Agora cada um reclama a sua parte e não entende por que o dinheiro não foi todo entregue ao povo. Onde está a revolução?
A Faculdade de Letras e das Artes de Manouba esteve encerrada em Dezembro e parte de Janeiro porque duas estudantes queriam assistir às aulas com o rosto tapado com o niqab, o que é contrário a todos os regulamentos universitários. Depois de verem recusada a entrada nas salas de aula – podem frequentar muitos dos espaços universitários, inclusivamente a biblioteca -, boicotaram as aulas com a ajuda de militantes salafistas e agrediram professores. É a pressão dos fundamentalistas do Ennahda, o partido que ganhou as eleições para a assembleia constituinte e formou um Governo que deveria ter carácter provisório e ser semipresidencialista.
Contudo, o primeiro-ministro Hamadi Jebali controla todos os poderes e o Presidente Moncef Marzouki, que vem da luta pelos direitos humanos, insuspeito de ser antidemocrata, não representa mais do que um papel decorativo. Por outro lado, e apesar de não ocupar qualquer cargo governativo, Rashid al-Ghannushi, o dirigente do partido Ennahda, é quem controla o poder, ambicionando tornar-se o guia espiritual da Tunísia, numa espécie de versão árabe dos ayatollahs, e é na verdade o primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros oficioso.
De qualquer forma, no meio dos quarenta ministros que compõem o Governo, que é um Governo de alianças, são grandes as contradições, com o ministro da Cultura, o sociólogo Ezzeddine Bach Chaouech, a reclamar que o direito à liberdade de criação e de expressão seja inscrito na Constituição. Ao mesmo tempo, deputados da maioria reclamam que se inscreva na mesma Constituição a obrigatoriedade de os cursos nas universidades serem interrompidos durante as cinco orações diárias dos muçulmanos. Não necessariamente inscrito na Constituição, mas como regulamentos escolares, está a pretensão de interditar as turmas mistas, proibir a leitura e o estudo de Madame Bovary, de Flaubert, acusada de ser prostituta e Nietzsche de ser ateu. Onde está a revolução?
Cravos por jasmim
São aos milhares as armas que circulam entre os cidadãos, a maioria roubada durante os primeiros dias da revolução. Há pequenas manifestações todos os dias, seja para contestar decisões tomadas pelo Governo, seja de grupos na reivindicação dos seus interesses, seja de natureza explicitamente política, como aquelas dos jornalistas contestando a nomeação de dirigentes islamistas para os órgãos do Estado, seja dos intelectuais e dos artistas ocupando em permanência uma praça frente à sede do Governo.
Muitos dos muros da cidade que foram grafitados depois de 14 de Janeiro já desapareceram, tapados por cartazes publicitários ou tapumes que preparam a construção de novos bancos ou condomínios.
Contudo, alguns tunisinos com sentido da História e da memória fotografaram e filmaram a maioria desses murais e grafittis.
Onde está a revolução é a pergunta que faz o visitante apressado ou o tunisino já decepcionado com a falta de emprego, a falta de estabilidade social e económica, a queda assustadora do turismo, uma das mais importantes fontes de receita, as tensões sociais e a deriva política aparentemente inesperada que foi o voto maciço no partido Ennahda.
E, no entanto, a revolução existe. A liberdade de imprensa é um facto que se traduz nos editoriais, no jornalismo de investigação, na cobertura sem restrição dos acontecimentos sociais e nas páginas do internacional.
Se durante a ditadura eram muitos os tunisinos que acediam clandestinamente aos canais de televisão, na actualidade, isso é um facto na grande maioria das casas da classe média, que podem aceder a mais de 3.000 canais oriundos só do golfo e dos países do Médio Oriente, a que há a somar os canais franceses, espanhóis, a BBC e a CNN.
E a abertura de editoras, a publicação de livros de autores tunisinos, as traduções, as novas livrarias. A Millefeuilles, a mais famosa livraria de Tunes, que existia muitos anos antes do 14 de Janeiro e deve o seu nome a ter sido antes uma pastelaria, teve de acrescentar prateleiras para poder expor todos os livros que agora já pode vender em liberdade.
A revolução ainda está na rua, uma frase a fazer ecoar a revolução do 25 de Abril de 1974, que é uma evocação permanente de cada vez que se fala do modo como o 14 de Janeiro aconteceu e de cada vez que se pergunta sobre o futuro deste país.
Na verdade, são impressionantes as semelhanças, uma espécie de filme, de um clássico que corre diante dos olhos nas ruas e nas reuniões em Túnis com tunisinos. A liberdade do debate tantas vezes excessivo na forma, a crítica intempestiva e a ironia são traços desta similitude.
Num teatro, o público de uma comédia de costumes sociais, uma espécie de teatro de revista, aplaude entusiasticamente de cada vez que uma personagem salafista ou membro do Governo é caricaturada ou criticada, o Facebook e o Twitter continuam dinâmicos – são muitos aqueles que, talvez por precaução, continuam sob nomes falsos a colocar posts ou a twitar.
As revoluções fazem aparecer o que de melhor e de mais horrível está latente numa sociedade. A Revolução do Jasmim não escapa a esta constante. Daí não poder ser surpresa que, a par com a generosidade e a intervenção cívica, tenham emergido também os fanatismos religiosos e as vontades totalitárias. A este propósito ainda perguntei se alguma companhia de teatro teria montado recentemente O Parque, de Botto Strauss, ou Hamlet Machine, de Heiner Muller.
Parece que não. Isto porque o teatro foi das poucas artes toleradas pelo regime de Butos Ali, que, sabendo do impacto reduzido que teria sobre a maioria da população, com taxas de analfabetismo elevadas e alheia na sua quase totalidade ao teatro, lhe permitia vender uma imagem de Governo tolerante.
Mas o mais interessante neste contexto, é que, depois da euforia revolucionária, da vontade de mudar a cidade, o país e o mundo no dia seguinte, da sensação de que tudo é possível, vem depois o cansaço, a ressaca, o desencanto.
Tudo isto estava presente no colóquio organizado pelo festival Rencontres Théâtrales de Cartago, um festival internacional que conta maioritariamente com a presença de companhias do Médio Oriente, do Magreb, algumas da África Subsariana e poucas companhias europeias apresentadas pelos seus institutos de origem, seja o Goethe, o Instituto Francês e outros.
O tema do colóquio era o Teatro e a Revolução, discutido por actores, encenadores, jornalistas e programadores, na maioria da região mediterrânica. As discussões eram acaloradas, muito especialmente sempre que intervinham os tunisinos, os iraquianos, os sírios.
Tratava-se da urgência de encontrar um teatro revolucionário ou de fazer o teatro seguir a revolução. A disciplina era difícil de manter por qualquer moderador, os pontos de ordem à mesa sucediam-se, houve tentativa de boicote de uma reunião, por muitos considerada anti-revolucionária. Na verdade, assistia-se à aprendizagem trôpega da democracia em funcionamento, de muito ressentimento e de vontade genuína de alterar o estado da situação cultural. Mas deve-se acrescentar que também se tratava de assistir ao conflito entre o velho – o velho teatro, os velhos responsáveis pelas instituições culturais da Tunísia, os velhos argumentos do teatro da identidade tunisina (quando, na verdade, o teatro começa na Tunísia, como em todo o Médio Oriente, só no século XIX...) – e o novo, pouco representado ou pouco expressivo, porque ou não estariam presentes os seus actores ou porque não saberiam como se fazer ouvir num ambiente tão conflituoso.
Mais uma vez, alguém pergunta como foi o teatro e a revolução de Abril e é importante dizer que houve também um momento de excesso de expectativas nos dias seguintes, quando se pensava que muitas obras-primas sairiam das gavetas onde tinham sido fechadas pela censura e, na verdade, tal não aconteceu ou aconteceu pouco simplesmente porque, sob um regime de ditadura, é muito difícil criar. E que, por este motivo, surgiu a decepção, mas que foi possível, depois, construir um teatro em democracia com muitos textos importantes, com encenadores e actores notáveis, que foi possível construir um teatro contemporâneo em liberdade. Mas que tal demorou tempo, alguma disciplina e recursos financeiros e aprendizagem da profissão e da democracia.
E quando perguntaram que ameaças existiam entretanto, tentei chamar a atenção para formas demagógicas da cultura artística que podem surgir: a obsessão por uma arte da identidade que pode acabar num nacionalismo patético e isolacionista, o kitsch como forma de expressão artística e política populista e a vitimização do artista, que é uma forma de chantagem inadmissível sobre a sociedade. E que o que acontecia neste momento na Tunísia como no Egipto era que aquilo que se designa como o cultural ainda estava acontecer na rua e era prioritário vivê-lo.
Viver em liberdade
A laicidade do Estado e a instauração da democracia são as questões de fundo e as razões das tensões e dos conflitos que hoje emergem na sociedade tunisina. O editor Karim Ben Smail é um tunisino com uma formação feita em França e nos Estados Unidos mas há muito residente em Túnis, e orgulha-se de ter publicado e distribuído na clandestinidade obras relevantes para os seus leitores durante a ditadura. Agora edita sobretudo ensaios porque é a "experiência de viver em liberdade", ensaios em especial de psicanalistas e de jornalistas, os romances novos e a nova ficção vão precisar de mais tempo. Como em Portugal, digo eu. É um dos intelectuais que se puseram a estudar a revolução dos cravos quando o 14 de Janeiro aconteceu. Também ele repete que são muitas as semelhanças entre as duas revoluções, mas que há um "detalhe" substantivo: "Na vossa revolução, vocês não tinham um deus tirano a intervir em favor de uma das partes", diz, glosando assim aquilo que é a manipulação pelos islamitas integrados no partido Ennahda, a quem responsabiliza pelo abuso dogmático na interpretação do Corão e nas tentativas de controlo total e regimentado da sociedade tunisina. Ainda lhe digo que, à época, houve alguns membros da Igreja Católica que tiveram em Portugal um comportamento abusivo, mas há que reconhecer a diferença, que é fulcral e que começa necessariamente na tentativa de impor uma ditadura do quotidiano dos tunisinos. Em seguida, diz-me também da sorte que tivemos de, à época, termos parte de uma Europa democrática a ajudar Portugal financeiramente mas, principalmente, a integrar as regras da democracia. O que eles têm mais presentes são regimes ditatoriais do golfo ligados aos salafistas a apoiarem as facções mais retrógradas do mundo muçulmano.
Para eles, os tunisinos, a Europa está tão perto quanto distante. Na verdade, Túnis está a 30 minutos de avião de Palermo, a 40 minutos de Malta, a 1h20 de Genebra, a 2h30 de Paris, a 3h de Lisboa e, contudo, a Europa a que pertencem estas cidades está muito distante na solidariedade concreta e é suspeita de, para conservar os seus interesses comerciais, ser incapaz de solidariedades políticas para os protagonistas e herdeiros da Revolução do Jasmim.
Na Avenida de França, defronte à loja dos Artigos de Desporto do Magreb, um homem sentado no chão aluga a sua balança aos transeuntes por um preço equivalente a 30 cêntimos. No mesmo passeio, poucos metros à frente, vendem-se postais ilustrados da Tunísia. A maioria são postais de Túnis no Verão com fotos coloridas por buganvílias vermelhas a treparem eufóricas pelos muros e pelas casas brancas da cidade.
António Pinto Ribeiro
(cf. artigo no Público, 19.01.2012)